segunda-feira, 18 de abril de 2011

Vítima de Tráfico de pessoas ( Entenda a história)


No dia 21 de dezembro de 2009, um garoto estrangeiro, na época com 11 anos, foi encontrado sozinho na Estação Corinthians-Itaquera, na zona leste de São Paulo. O garoto e sua família foram vítimas de uma rede internacional de extorsão e tráfico de pessoas. A reportagem do Fantástico investigou esta história que começa no Haiti, passa pelo Brasil e chega à Guiana Francesa.
A família hoje está partida em três pedaços, dividida em três países. “Todos esses anos eu nunca deixei de pensar neles. Meus filhos não saem do meu pensamento”, diz Dieula Goin, mãe do garoto encontrado na estação de metrô. São oito longos anos de distância, saudade e dor.
Em 2003, a haitiana Dieula Goin ficou viúva e, sem ter como sustentar a família, imigrou para a Guiana Francesa. No país, ela casou-se novamente e, com melhores condições de vida, resolveu contratar uma pessoa para buscar os dois filhos que tinham ficado no Haiti. Sem saber, Dieula estava caindo em uma rede internacional de extorsão e tráfico de pessoas.
O fio da meada que permitiu esclarecer a ação da quadrilha foi encontrado no metrô de São Paulo. “A gente foi interrogando: ‘Você é da África’?”, lembra o agente de segurança Reinaldo Carneiro.
Um intérprete chegou a ser chamado, mas a criança não falou muito. “Ela estava confusa, porém muito tranquila. Até sorriu um pouco”, comenta o agente de segurança Marcelo Rossi.
O garoto foi recolhido a um abrigo. Uma semana depois, durante uma inspeção de rotina, o juiz da Vara da Infância e Juventude Paulo Fadigas perguntou quem era aquele menino que não falava português. “É um menino africano do Haiti que fala inglês. Espera aí! Primeiro: Haiti não é na África e se fala francês ou outra língua”, lembra o juiz.
No início, todo mundo pensava que era um caso de desaparecimento. “Criança perdida. Jamais tínhamos cogitado em criança objeto de tráfico de pessoas”, disse Fadigas. Aos poucos, porém, os sinais de que havia algo errado começaram a aparecer. O garoto ficava nervoso ao entrar em um carro e se recusava a comer sem que alguém provasse a refeição antes.
“Ele pode ter, sim, em alguns momentos, sido dopado ou mesmo ter ficado em local fechado muito tempo para que ele pudesse não reclamar de tudo aquilo também”, acredita a promotora de Justiça de São Paulo Eliana Vendramini.
Na mochila do garoto foi encontrado o passaporte da haitiana Mirlande Stinvill. Quando o garoto contou que a mulher não estava sozinha e que outras pessoas viajavam com ele pela América Latina, a Polícia Federal e a Interpol passaram a investigar o caso.
“Principalmente, quando uma das pessoas que provavelmente trouxe o menino para o Brasil veio procurar o menino no Fórum”, destaca o juiz Fadigas.
O haitiano Smith Moise foi o homem que procurou o juiz. Moise tentou reaver o menino, dizendo que Mirlande era tia dele, o que, segundo o juiz, não é verdade. Dois outros haitianos também são suspeitos: Jean Pierre Samuel e Nozyle Liz.
O delegado responsável pelo caso pediu a prisão dos envolvidos, mas o pedido foi negado, porque o Ministério Público Federal considerou as provas insuficientes. O juiz mandou reforçar a segurança do garoto. O Fantástico tentou contato com todos os suspeitos, mas apenas a ex-namorada de Jean Pierre Samuel atendeu dizendo que ele voltou para o Haiti.
“O Samuel não conhecia o garoto, mas o amigo do Samuel, acho, que conhecia do Haiti, mas eles encontraram por acaso. Não tem nada a ver que trouxeram ele. Encontraram o garoto por acaso, alguma coisa assim, foi. Eu não sei direito”, contou a ex-namorada.
A investigação rastreou os passos do que seria uma quadrilha de coiotes, os traficantes de pessoas. “Mapeamos os lugares, os endereços e as casas. Deu para mapear tudo”, disse o juiz Paulo Fadigas.
Haiti
A história começa quando o menino é buscado em casa, no vilarejo de Fundo dos Negros, no interior do Haiti. No dia 1º de dezembro de 2009, ele embarcou em Porto Príncipe, a capital haitiana, em companhia de três adultos: Jean Paul Samuel Myrtill, Jean Pierre Sainvil e Sandra Lorthe. Eles fazem conexão no Panamá e seguem para Lima, no Peru. No dia 15 de dezembro, já estão na Argentina e, no dia 21, o garoto é encontrado na Estação Corinthians-Itaquera, no metrô de São Paulo.
Uma estatística estarrecedora indica que, entre 2009 e 2010, outras 50 crianças haitianas entraram no Brasil, passando pelos guichês de imigração dos aeroportos de Guarulhos, em São Paulo; de Confins, em Minas; do Galeão, no Rio de Janeiro; e de Manaus, sem que ninguém fosse barrado.
Dessas 50 crianças, pelo menos 30 são meninas. Todas têm registro de entrada no Brasil, mas nenhuma tem registro de saída.
“Essa é uma dúvida que também me perturba, porque nós conseguimos mapear, pelo menos, uma. Uma conseguimos mapear. Essa nunca chegou à Guiana. Ela saiu e nunca chegou. Se estaria viva? Isso não sei”, diz o juiz Paulo Fadigas, questionado sobre onde estariam essas crianças.
Em nota, o Ministério Público Federal diz que é preocupante a situação nos aeroportos brasileiros, porque a entrada dos suspeitos não foi detectada. Não descarta a hipótese de exploração sexual e teme que as crianças ainda estejam retidas no país para que a quadrilha possa extorquir mais dinheiro dos pais.
Depois que fez contato com a mãe, na Guiana Francesa, o juiz se convenceu de que ela foi enganada pela quadrilha. Ficou claro também que Dieula era imigrante clandestina, o que tornava tudo mais difícil.
“O próximo passo é conseguir a permissão para que o menino entre em território francês. Isso depende do governo francês exclusivamente. Da nossa parte, o menino tem que ir para as mãos da mãe”, afirma o juiz Paulo Fadigas.
Guiana Francesa
A Guiana Francesa faz fronteira com o Brasil. Caiena, a capital, abriga dois mundos. O dos imigrantes legais é limpo, rico e próspero. O dos clandestinos mergulha na pobreza das favelas.
Todo dia de manhã, em frente à prefeitura de Caiena, se forma uma pequena fila. São imigrantes tentando o visto de trabalho. Vem gente de todo lugar: do Brasil, de Suriname, da outra Guiana, a de colonização inglesa, e do Haiti. Os haitianos formam hoje, seguramente, a colônia de imigrantes que mais cresce na Guiana Francesa. São quase 60 mil imigrantes haitianos, o dobro dos brasileiros.
Em Kourou, no interior da Guiana, o repórter Marcelo Canelas procura uma comunidade haitiana, onde encontra a estudante Rose Martin falando português. “Aprendi na escola e na rua, com os amigos brasileiros”, conta ela, que hoje tem 16 anos, mas quando tinha 10 foi trazida por coiotes. A mãe de Rose estava ilegal na época e teve de contratá-los. Ela revela que veio trazida por dois homens e que havia outras crianças na viagem.
O consulado brasileiro na Guiana Francesa recebe frequentes pedidos de visto para que haitianos possam cruzar o Brasil e buscar seus filhos em outros países da América Latina, como a Bolívia. “Sem dúvida que fazemos parte de uma rota e fazemos parte especial de uma rota”, afirma Ana Lélia Beltrame, cônsul-geral do Brasil na Guiana Francesa.
A reportagem do Fantástico vai à procura de Dieula Goin no bairro de Matouri, na periferia de Caiena. François Estimilorme, marido de Dieula e padrasto do garoto, aparece. A caminho de casa, onde está a mulher, ele explica que estão todos ansiosos por receber o garoto, que a mãe chora todos os dias esperando por ele e que a família inteira aguarda notícias.
François está feliz, porque tem muitos filhos e vai ter mais um. “São nove, ao todo”, ele diz. François conta que conheceu o coiote em Caiena. Pagou US$ 2 mil, quase R$ 3,5 mil, mas era para trazer os dois filhos de Dieula. O homem, além de só viajar com um dos garotos, pedia dinheiro a cada parada e depois telefonou do Brasil pedindo mais. “US$ 2 mil”, conta François.
O casal nos recebe numa casa simples, mas muito bem equipada, com forno digital, geladeira, fogão e televisão. Tiveram cinco filhos. François tem mais quatro, todos na escola. Por isso, a família recebe o equivalente a R$ 4 mil de ajuda do governo francês.
Pedreiro, François está legalizado, com visto de trabalho recém renovado por dez anos, mas a mulher dele não – e é por isso que ela teve de recorrer aos coiotes. Dieula conta que está tentando reunir os filhos desde 2009 e que se desesperou quando a extorsão começou, temendo sempre pelo pior. Ela chegou a pensar que o filho tinha morrido.
François não entende como uma criança pode ser abandonada no metrô de uma grande cidade estrangeira. “A senhora deixou um menino, uma criança muito pequena lá no Haiti. Hoje ele é um adolescente. Como que a senhora imagina que ele esteja hoje?”, pergunta o repórter. “Uma mãe nunca se engana. Eu vou reconhecê-lo. Os dois, meus dois filhos. Eu nunca deixei de pensar neles em momento algum”, afirma a mãe.
A reportagem vai ao Palácio do Governo, em Caiena, para saber como está o processo de regularização de Dieula e é recebida pelo governador Daniel Ferrey, um francês enviado de Paris para administrar a Guiana. A autoridade liga para o serviço de imigração e manda regularizar em três dias a situação da mãe do garoto.
Dieula Goin não tinha passagem pela polícia, o companheiro dela está legalizado. Então não há motivo, até por razões humanitárias, que ela permaneça ilegal. Quando perguntado, então, quando o garoto poderia vir, o governador é claro: “Da parte da França, imediatamente. A bola agora está com o Brasil”.
Ao conhecer a posição da França, o juiz Paulo Fadigas mandou providenciar a documentação da viagem, mas ainda esbarra em procedimentos legais. “Temos toda uma comunicação oficial, muito demorada, muito lenta, que exige muita formalidade, e o tempo da infância é outro. O tempo da infância é muito rápido, porque um ano é uma eternidade para uma criança”, observa o juiz Paulo Fadigas.

# Carlos Victor

Um comentário:

  1. Eu vi a reportagem no fantástico... É tão assustador imaginar que algo assim está acontecendo diariamente e nós ignoramos...

    Belo post!

    ;D

    ResponderExcluir